Foi precisamente há um ano. Relato-o aqui, agora, porque passou tempo suficiente para todos nós, directa e indirectamente envolvidos, nos tenhamos recomposto do trágico e bizarro episódio de 23 de Julho de 2008.
Em reportagem por uma semana no Algarve e Sul de Espanha (na cobertura jornalística do estágio do Sporting em Isla Canela, Espanha, e do Torneio do Guadiana, em Vila Real de S.to António), tinha de fazer deslocações diárias de Ayamonte ou Monte Gordo até Faro para fazer os envios do material para Lisboa, a partir da nossa delegação do Algarve (situada na capital algarvia). Na viagem dessa quarta-feira, parei na A22 (Via do Infante) ao deparar-me com um acidente grave que tinha ocorido minutos antes, por volta das 10h30 da manhã. Eu e o meu colega saímos do carro de reportagem, começámos a fazer o nosso trabalho (apesar da pressa em chegar para fazer o envio até às 13h00), simplesmente porque um jornalista (mesmo que seja da informação desportiva) é sempre jornalista e a cara nunca deve ser virada à notícia. A regra cumpriu-se, desta vez também. Um automóvel ligeiro tinha embatido violentamente numa carrinha que, em marcha lenta, assinalava a marcha (ainda mais lenta) de uma máquina que, poucos metros adiante, remarcava a estrada. Uma criança era assistida na berma da estrada enquanto a mãe (condutora do pequeno Saxo verde) era desencarcerada para ser pronunciada morta momentos depois. Um quadro medonho de que eu e o meu colega de equipa tínhamos falado na noite anterior, quando lhe disse que em situações semelhantes sempre senti um odor de óleo misturado com combustível, água de radiador, fumo e sangue (peço desculpa pela descrição "gráfica") que, inevitavelmente, identifico com a morte. Quando o acaso ditou que nesse dia (horas depois da conversa com o meu novato colega) me cruzasse com um acidente de viação, pude dizer-lhe que era precisamente aquele o odor de que falava. O meu colega ficou algo abalado mas reconheceu ter aprendido alguma coisa naquele momento. Horas depois, desabafou confessando que por ser a primeira vez que tinha trabalhado num acidente, era-lhe estranho pensar no que haveria de ter sido o último dia daquela família.
No dia anterior, 22 de Julho, uma outra equipa do meu órgão de comunicação social esteve numa associação de luta contra a sida com graves problemas financeiros. Na reportagem surgia a presidente da entidade, que pedia ajuda para salvar a instituição. A data marcada para a publicação desse trabalho foi o dia seguinte, 23 de Julho. O destino quis que a vida ceifada nesse trágico acidente da A22 fosse precisamente a da protagonista da reportagem realizada no dia anterior e que o único órgão de comunicação social e fazê-la fosse também o único a reportar no local o sinistro em que a senhora faleceu - sendo que, naquele momento, naturalmente foi impossível saber de imediato a identidade da vítima. Tamanha coincidência deixou consternada toda a gente na delegação (e também a nós, que somos "de fora"). As probabilidades de tal sucessão de acontecimentos se dar são de escassíssimas a nulas. No entanto, a verdade é que aconteceu tudo assim.
O meu colega nunca tinha trabalhado num acidente, não conhecia o "odor da morte", falámos nisso e aconteceu; tal como o facto de vir a saber o que foi o último dia da vítima, também depois de termos conversado sobre esse assunto. Do lado mais negro de todas as coincidências, a pessoa em causa esteve em vias de surgir exactamente no mesmo jornal... viva... e morta, simultaneamente. A "sorte" (se é que se pode falar de sorte neste episódio terrível) é que a coincidência da identidade foi descoberta mesmo a tempo de se evitar a publicação da primeira reportagem (da asociação) e, assim, preservar a família e os amigios da vítima a uma recordação ainda mais dolorosa, naquele que terá sido, certamente, o dia mais trágico vivido por aquelas pessoas.