terça-feira

«A moléstia come-lhe o cérebro...»


Não fosse o tom esbranquiçado nos olhos e ninguém daria conta de que algo vai mal na expressão de Antonieta. Ninguém... não é bem assim. Manuel, sessenta e muitos anos de árduo labute e merecido descanso que, afinal, não tem, nota e sabe o que se passa. Logo agora que julgava ter terminado a sua longa jorna de verões quentes sempre enfiado nos campos... Não nas terras mas em casa, Manuel continua a trabalhar, que mais não seja no vai-vem preocupado de e para a porta da rua, que tem de estar sempre fechada, não vá algo de imprevisível acontecer. A memória também a ele lhe falha, aqui e ali; por isso, mais vale verificar de vez em quando se a chave está rodada no sentido certo do que dar com Antonieta perdida na estrada. Não que haja ali muito movimento, que passe ali muito carro (ou até muito depressa), mas... mesmo assim... Tudo isto porque a mulher, que sempre foi fêmea mexida e de poucos tempos mortos na vida, se queda agora pela cozinha da casa, aparentemente feliz mas sem dizer coisa com coisa. A maleita (Manuel chama-lhe moléstia) come-lhe o cérebro, parece. As frases que dantes saíam rápidas e certeiras da boca de Antonieta limitam-se agora a «Tá bem... Tá bem... Tá bem...», «Ah! As minhas meninas!... Tá bem... Tá bem...» e pouco mais, quando as primas a visitam, por exemplo. Daí que seja tão difícil e tão cansativo a Manuel tentar entendê-la. Quase mais fatigante do que os dias passados "de sol a sol" nos trigueirais ou na apanha da azeitona. O desânimo marca agora uma expressão do sexagenário, bem diferente daquela que as fotos à entrada da casa mostram (com os bisnetos ao colo, todos de sorriso aberto - só mesmo o mostrar das fotos às visitas consegue agora arrancar um suave levantar do lábio e do olhar a Manuel... Só mesmo isso). A "moléstia" - que é dela e não dele - na verdade só o afecta a ele e não a ela. Ela nem sabe que carrega uma maleita. É feliz na tristeza do marido, de que também não se apercebe. Menos-mal, pensa Manuel; se assim não fosse... Ele não gosta de falar nisso, evita fazê-lo porque se lembra que foi para as horas boas e más que casou com Antonieta, mas também ele não está (fisicamente) bem. O "relógio" já não trabalha com o compasso certo que um dia teve, e ir ao doutor... só mesmo se alguém zelar pelo bem da mulher. Mas ninguém zela, infelizmente. E a consulta, marcada e remarcada, adiada será mais uma vez... e outra... e, se calhar, outra. A aldeia há muito que vê partir gente e mais gente. Uns vão para longe, outros para mais perto, mas estes últimos já não ajudam e do lugar para onde foram já não voltam, de certeza absoluta. As ruas ficam praticamente desertas um dia inteiro, um mês inteiro, um ano inteiro, quase. Ninguém ali passa para saber como está Antonieta, como está Manuel; muito menos para ficar a tomar conta da senhora umas boas horas seguidas. Ela, que já não faz as bonecas que sempre fez, nem delas se lembra, quanto mais... Ele, que já não trabalha no campo como sempre trabalhou, está enfiado em casa, por enquanto ainda são de cabeça mas a dar em doido com a "loucura" da mulher. Até um dia, em que o relógio pare... de repente.

domingo

The Time Of My Life


Estou de regresso da minha viagem de lua-de-mel, só "passando" por aqui para registar este momento, já que 8 horas de avião (e 13h ao todo desde que deixei o conforto do hotel) fazem mossa num corpo até ali relaxado ao máximo. Dito isto, preciso relembrar o mundo que, erradamente, quase sempre sentimos dificuldade em encontrar nas coisas pequenas aleatórias da vida o simples facto de que, por vezes, são elas que definem a singularidade de um determinado momento. Hoje, poucos minutos antes do avião aterrar na Portela, o assistente de bordo começou a pedir aos passageiros para apertar os cintos de segurança e desligar os aparelhos electrónicos. No computador, eu tinha colocado música dos anos 80 a tocar sem uma ordem definida - tocava aquela que o MediaPlayer "quisesse". Com a bateria a acabar e o assistente a chegar ao nosso lugar, restava apenas tempo para mais uma canção, que o computador "escolheu". Foi nesse momento que soaram os acordes de um (piroso, é certo, mas ao mesmo tempo simplesmente sublime) "(I Had) The Time Of My Life", de Bill Medley e Jennifer Warnes. Cada um com o seu auricular, ouvimos a música e concordámos que mais nenhuma melodia faria sentido naquele preciso instante. Com Lisboa aos nossos pés e a nossa casa já tão perto, com o "paraíso" deixado para trás, lá tão longe... restava-nos reconhecer com um sorriso cúmplice e de inegável saudade o que a canção nos dizia ao ouvido. E eu sei que cada um para si pensou o mesmo: I had the time of my life!...