domingo

As floristas também choram


Não me lembro se nutro ódio à séria por alguém. Sendo assim, parece-me que a pessoa que mais odeio é uma florista, de quem nem o nome sei. A razão é simples. No velório da minha avó, a dita profissional do ramo da jardinagem e decoração veio colocar junto à urna alguns ramos e coroas oferecidas pelos amigos e conhecidos. Nada disto seria razão para grande celeuma, não fosse a frieza com que a senhora atirou para o lado todos os ramos que já lá estavam e, indiferente à dor de quem velava o corpo, fez o seu trabalho de forma brutalmente insensível. Bastava ter pedido ou sugerido que saíssemos da sala por 5 minutos. Não o fez... e, na verdade, esteve a escassos 5 minutos de ser expulsa dali. Só não aconteceu por respeito meu à minha avó e nada mais. E como isso não aconteceu, até hoje sinto que aquela florista é a pessoa que mais odeio na vida. Há dias, voltei à mesma sala mortuária para outro velório, de um primo meu. A florista lá andava, a fazer o seu trabalho, de um lado para o outro, por entre as pessoas presentes, carregando ramos e coroas como em todos os dias fúnebres da aldeia. Só que, desta vez, também ela chorava. Enquanto transpostava os arranjos florais dedicados ao falecido, as lágrimas corriam-lhe dos olhos estriados pela cara corada do choro. Afinal, as floristas também choram - pensei. Aliás... afinal, aquela florista também chora. Confesso que fiquei confortado por saber que, ao contrário do que pensava, também há sangue a correr naquelas veias. Mas, mesmo assim, essa constatação não me apaga da memória o episódio do velório da minha avó e, por isso, a florista continua a parecer-me ser a pessoa que mais odeio na vida.



Curiosamente, por vezes, aquilo que escrevo faz-me olhar para dentro, logo a seguir a ter olhado para fora. Neste caso, percebo que - por inerência da minha actividade profissional - não me é permitida quase nunca a expressão de emoções perante seja o que for. Na minha profissão, a neutralidade é tudo e a insensibilidade é... quase tudo. Daí que, tal como eu odeio a florista, haja certamente dezenas ou centenas de pessoas que me odeiem da mesma forma... e com toda a razão.

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