terça-feira

10 Graus às 10 da manhã


O fato e os óculos quadrados davam o mote. A pasta dos documentos, colocada no chão, encostada a uma das pernas da mesa, compunha a imagem. O cabelo grisalho e o bigode farto a condizer conferiam-lhe um ar de avozinho. Mas algo não estava bem. Passavam poucos minutos das 10 da manhã e isso claramente perturbava o senhor, que ia mirando o relógio vezes sem conta. O que esperava, não sei. Nem sei mesmo se esperava o que quer que fosse. O que sei é que olhava muito para o relógio e que havia nervos ali, porque os pés, tal como o pulso esquerdo, não paravam quietos. Mais uma olhadela para o relógio. Mais um suspiro nervoso. O ar de avô mantinha-se, muito embora aquela agitação tirasse toda a possível simpatia dessa imagem. Na pastelaria iam entrando e saindo pessoas, sós e acompanhadas. Quase todas pediam café ou um pastel para o pequeno-almoço. O “avô” não pedia nada. Olhava para o relógio, simplesmente. Para esses que pediam café não olhava; só mirava a janela como quem olha para o vazio… e, claro, o relógio. De repente, e após mais um relance para os ponteiros que se moviam no aparelho do pulso, levantou o dedo. O empregado veio rapidamente, fez um aceno de concordância com a cabeça, foi até ao balcão e voltou. Deixou os 20cl de 5,4º em cima da mesa e foi-se. A imperial não durou 1 minuto. Bebida praticamente de “penalty”, a cerveja desapareceu num ápice. O dedo levantou-se de novo. Repetiu-se a prontidão do empregado e a rapidez na satisfação do pedido. Nova imperial, bebida num instante. O pé parou. Os olhos ficaram de vermelho raiados e para o relógio não mais olharam. O homem fumou dois cigarros, pegou na pasta dos documentos, levantou-se, ajeitou o fato e certificou-se da correcta posição dos óculos quadrados no rosto. Deixou o dinheiro na mesa e saiu. Não o vi mais. Não sei para onde foi. Mas acredito que é assim que começa todos os seus dias. Como qualquer outro doente alcoólico.

1 comentário:

Maria disse...

"São os loucos de Lisboa..."