segunda-feira

A minha "Giancaldo"


Chegar à minha terra faz-me sempre recordar o meu filme favorito: “Cinema Paraíso”. Principalmente, se a viagem desde Lisboa até ali for feita de transporte público, neste caso, o comboio. Tenho sempre a sensação de que, como Toto (Salvatore, o protagonista da película italiana), chego à minha “Giancaldo”, uma pequena vila perdida num distrito secundário onde as ruas parecem estar sempre cada vez mais vazias e onde nos sentimos cada vez mais fora de sítio. Foi isso que senti, de novo, ontem. A estação – que, entretanto, se tornou um mero apeadeiro – mantém a traça original e o velho (mas impecável) azulejo a dizer “Retretes” mas está agora toda renovada. Os velhos telheiros deram lugar a modernas e boas coberturas, com escadas e elevadores para salvaguardar a passagem segura de uma linha para a outra… mas não há pessoas. Não se vêem funcionários. Nem passageiros, quase. Não se vê ninguém onde antes se viam dezenas de pessoas, saindo, entrando, esperando, conversando, fazendo malha, vendendo bilhetes de cartão prensado de várias cores… Há agora um vazio onde antes havia vida. E até a voz feminina, bem colocada e com dicção irrepreensível (em oposição à pouco radiofónica voz do antigo Chefe de Estação que, com deficiente dicção, ia dizendo os horários das “composições” que iam e procediam do Entroncamento, Alfarelos ou Coimbra - B), “recebe” os passageiros com a ausência que os vocábulos, quase soltos, debitados por um computador transmitem. Essa modernidade oca, sente-se em toda a vila. Terra de prédios velhos em que as únicas obras feitas são as pinturas com tintas novas e nada (ou pouco) mais. Uma loja aberta ali, um café que fechou acolá… Portas dantes escancaradas e com clientes sempre a entrar e sair dão agora lugar a fachadas com várias camadas de cartazes colados, rasgados e colados de novo, vidros sujos de gráfiti por fora e empoeirados por dentro, impedindo ver o que lá vai dentro, ainda que se adivinhe que mais não seja que cadeiras e mesas amontoadas com teias de aranhas que serão agora a única “clientela” da casa. Uma caminhada até ao centro da vila revela… mais do mesmo. Pouca gente se cruza comigo. A que se cruza… está mais velha. Os mesmos rostos … com mais rugas, com mais cabelos brancos, com um ar mais pesado… com menos razões para sorrir, talvez. Aqui e ali, uma ou outra cara nova, desconhecida, que nada me “diz”. Mas até nisso, parece-me, o tempo tem dado menos que tirado à minha “Giancaldo”. Os corrimões da escadaria do meu prédio foram pintados também. De verde, escuro, feio. Já não há vestígios das minhas travessuras de puto, quando, escorregando por eles abaixo, lhes tirei grande parte da tinta branca que o empreiteiro lhes tinha dado, em duas demãos, por cima do Cuprinol. De volta à rua – porque é fim-de-semana de votação nacional – o confronto com a diferença dos meus mundos. Quem me tratava por “tu”, dirige-se a mim com um distante “Você” ou, pior ainda, “Senhor”; acena de longe e comenta para o lado que eu sou o «tal que saiu para a capital e agora é “famoso”». Os outros, que hesitam mas ainda assim soltam um confortante «Olá! Como estás?», tentam a todo o custo saber o meu sentido de voto; decerto para depois comentar que o «tal que saiu para a capital e agora é “famoso” votou nos “outros”». Enfim… A minha visita (passagem; no fundo, é só mesmo uma passagem) é curta. É sempre curta. Os meus pais não gostam, naturalmente, dessa fugacidade recorrente. Mas o tempo urge. Sempre. Por “isto”, por “aquilo”. Mas, pouco tempo depois de chegar, parto de regresso para a cidade que é agora a minha terra. Porque tem de ser. Porque já não me sinto parte de um local que ainda por cima nem sempre me tratou bem e que muda… pouco e raramente para melhor. Há quem me diga (e aos meus pais) que eu faço falta lá para ajudar a desenvolver a vila. Mas, na minha perspectiva, não há volta a dar (nem vontade de dar) a uma vila que há muito o tempo esqueceu. Esquecê-la – à minha vila – não vou esquecer, tal como Salvatore não esqueceu Giancaldo. Mas voltar… é-me sempre muito complicado. Como a ele foi também.

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