segunda-feira

Há coisas que nunca entenderei


Pela primeira vez - faço-o hoje - aqui digo textualmente que sou um profissional da Comunicação Social. Não o faço gratuitamente ou por qualquer outra razão que não esta: para que se perceba que a reflexão que a seguir faço me é extremamente dolorosa, tanto a nível profissional como pessoal.

O caso da menina de Cernadelo é uma aberração. Obviamente, sou defensor que a Andreia volte para a família de quem foi raptada. Mas tudo o que rodeou esse regresso (e até o próprio regresso, nos moldes em que aconteceu) foi de uma indignidade profunda.

Não vejo como lógico o circo mediático colocado numa aldeia modesta, com carros de directos televisivos e dezenas de repórteres de imagem quando a captação da imagem da cara da criança seria sempre obrigada a um desfoque da mesma. Não entendo que interesse noticioso terão três, quatro e cinco ligações em directo à porta da casa para tentar captar o momento exacto (em tempo real) da chegada da menina a casa. No máximo dos máximos, faria sentido uma reportagem, devidamente cuidada dadas as imposições em relação à protecção da imagem da criança, ao final do dia, dizendo algo como "Final Feliz para o caso da Andreia que, mais de um ano após o rapto, pôde voltar para os pais". Não... Quiseram todos os meios de Comunicação Social fazer o maior "figurão" do fim-de-semana e os directos com "nada de nada para dizer" sucediam-se a um ritmo tresloucado. No fundo - mesmo entendendo que há um fundo [muito lá no fundo... porque eu não nasci ontem e sei o interesse que uma história destas tem para um órgão de Comunicação Social... ou até apenas um programa num desses órgãos] de honestidade e desejo de ajudar a família em causa - acho que tudo isto se precipitou pela pressão que a Imprensa fez para que tudo acontecesse desta forma. De outra maneira, não seria compreensível que a Assistência Social permitisse que a Andreia fosse devolvida à família (com quem nunca havia estado, não é demais recordá-lo) apenas alguns dias depois de ter sido "descoberta". Tinha sido habituada - bem ou mal - aos tratos de uma outra "mãe", que não a pobre Isaura Pinto, que até os já muitos outros filhos tem dificuldade em criar. Na minha opinião (fundada, apenas e só, no meu bom senso), a criança deveria ter ficado mais tempo numa instituição, onde a menina e a mãe progressivamente se iriam conhecendo, até à familiaridade completa - demorasse o tempo que demorasse. Isso não aconteceu. A Assistência Social não só não permitiu que esse processo fosse feito condignamente como, pelo contrário, "atalhou" no que não devia. Precipitou o regresso da Andreia a Cernadelo... ainda para mais... num sábado! Com tempo de mais para preencher num dia sem trabalho, foram centenas as pessoas que se deslocaram à aldeia, não tendo sequer relação com a família em causa. Fez-me crer que tudo não passava de um "acidente". Uma espécie de acidente de trânsito, em que toda a gente pára, não para ajudar, mas para ver o sangue, para ver se alguém grita por socorro, para ver se os bombeiros demoram muito a chegar e para falar para as reportagens, dizendo "Eu não sei como aconteceu mas deve ter sido assim e assado... e o que eu quero dizer é que a ambulância demorou um tempão a chegar!... Claro que os senhores tinham de morrer!". É uma coisa... lusitana, estar onde acontecem as coisas, só para dar uma opinião infundada... mas nossa, orgulhosamente nossa, como se a ignorância bacoca tivesse de prevalecer sobre a verdade dos factos. A Assistência Social, sabendo de antemão do cenário de "festa" se preparava [outra coisa que nunca entenderei neste caso - parece que o regresso da menina era para agradar a quem queria forçosamente beber uns copos num sábado à tarde e não para que a criança pudesse, finalmente, viver a vida para que nasceu...], achou por bem que tudo acontecesse num fim-de-semana, logo após o resgate da Andreia, quando ainda a notícia estava "fervilhante" nas tv's, rádios e nos jornais. Ninguém é assim tão burro que não entenda que uma precipitação destas vais dar confusão... como deu... a não ser que seja intenção de quem "manda" ir a tempo de também "aparecer" nas notícias. Foi indigno ver as manobras de diversão para despistar os jornalistas [Quê?!? Então não era "suposto" lá estarem todos?!?], os desacatos dos populares que queriam forçosamente ver a menina [Para quê e porquê?!?] e a infeliz (mas até compreensível, no fundo) cedência da família Pinto em trazer a criança até à "festa", para deleite dos grunhos [Sim... são grunhos todos aqueles arruaceiros que ali estavam, já bem bebidos, a tentar destapar a cara da menina - quebrando a lei - e a mandar "postas de pescado" sobre uma criança que, por causa deles e de um regresso extemporâneo a uma realidade que nunca havia conhecido, deveria estar assustada de morte] e dos repórteres de imagem [os mesmos que, pouco depois, deverão ter ficado aborrecidos ao ver as imagens desfocadas].

Foi indigno. Tenho pena (que não é um sentimento que não gosto de ter) da pequena Andreia e espero que a deixem - agora - viver a sua vida . Espero que os meios de Comunicação Social não se lembrem de fazer mil e uma reportagens nos próximos tempos e que o façam apenas daqui a uns anos, para dar conta de uma boa adaptação e de uma infância que se quer feliz. Tenho pena (que não é um sentimento que não gosto de ter) que a Comunicação Social - toda ela - tenha olhado mais para os seus próprios interesses do que aos superiores interesses da criança. Espero que o que se fez, viu e ouviu no sábado não tenha deitado tudo a perder e que o futuro da menina não fique indelevelmente comprometido.

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