sábado

Querido PUNTO:


Chegou a hora do adeus. A partir de meados desta semana que não tarda a entrar nada seremos um ao outro. A frase é seca, fria, eu sei. Mas é disso mesmo que se trata. A nossa relação acaba quando deixar de ter as tuas chaves e os teus documentos em minha posse. Um pouco antes disso, terei feito a minha última condução ao teu volante. Não penses que é com despego e sem pena que o faço. Não é. Aliás, têm-me feito muita confusão estes últimos dias. A procura por novo carro, a decisão de qual comprar, os contactos com o concessionário, os orçamentos para os seguros, as últimas papeladas a tratar… Tudo isto foi feito sem pensar muito em ti. Mas foi por que tinha de ser. Fez-me confusão, mas teve de ser assim. Decidi não pensar nos últimos tempos que passei contigo, muito embora tivessem sido esses que precipitaram a cata por novo veículo. Decidi esquecer que os vidros eléctricos há muito tinham deixado de funcionar, tal como o rádio. Que foste assaltado por incúria minha. Que bati uma vez contigo a 4km de casa quando já tinha feito mais de 400 de viagem. Que te parti a antena sem querer numa lavagem automática. Que me deixaste apeado por teres dado cabo de uma bateria e de uma vez te ter empurrado num sítio inóspito, isolado e sem luz nenhuma, no escuro da noite, porque deixei a bateria descarregar. Que me negavas a direcção assistida quando te dava na veneta. Que a embraiagem começou a trabalhar mal e que a caixa de velocidades está prestes a encomendar a alma ao criador. Tudo o que decidi esquecer, no entanto, voltei a lembrá-lo ontem. Num (último) acto de dignidade para contigo, resolvi cuidar de ti. Limpar-te, lavar-te, tirar de ti o lixo que te fui deixando, aspirar o pó, as pedras, a areia e… os vidros (ainda os vestígios do assalto, um ano e meio depois!...). Não foi bom. Porquê? Porque fui forçado a conduzir de novo com os dentes cerrados, com medo, com mil preocupações, a pensar se avariavas ou não, se paravas no centro de um cruzamento movimentado, se a tua caixa de velocidades resistia,… se conseguia mesmo meter a “primeira”. Foi mau. Safou a tarde o facto de estar a cuidar de ti. Porquê? Porque me recordei do quanto passámos juntos. Foste o meu primeiro carro a “tempo inteiro”. Fizemos mais de 110.000km juntos. Levaste-me a conhecer sítios, a conhecer pessoas, a conhecer o amor, o ódio, a felicidade e a tristeza. De noite, de dia, com sol, chuva, nevoeiro (o raio do nevoeiro!); junto à praia, na montanha, no campo, na aldeia, vila e cidade; por estradas boas e más, auto-estradas, IP’s, IC’s, itinerários secundários, municipais, estradas de terra, caminhos estreitos e até por entre pedras; fomos juntos a muitos sítios. Fizemos viagens estritamente necessárias, outras de lazer e outras que se basearam simplesmente nessa coisa estranha que é a loucura humana (no caso, a minha). Fizemos mudanças (tantas!) e deslocações de trabalho. Fomos a casamentos e a entrevistas de emprego. Contigo fui a reuniões, funerais, exposições, aniversários, discotecas, cinemas, teatros, museus, restaurantes, cafés e tascas. Levaste-me só a mim ou encheste-te de gente para levar e trazer. Assististe a beijos, discussões, conversas interessantes e monótonas, silêncios incómodos e muito mais. Viste-me sorridente, aborrecido, ensonado (desculpa!), mal disposto, feliz, embevecido, corado, triste, admirado, a chorar, a praguejar, a cantarolar, a ralhar; viste-me bem e mal. E levaste-me sempre onde eu queria ir. Disseram-me que é irracional pegarmo-nos aos objectos e que é por isso que estou triste por me afastar de ti. Mas para mim foste mais do que um objecto. Foste mais do que um carro. Foste um amigo. Chegou a hora do adeus. E este é o meu adeus a ti. Obrigado por tudo.

PU-Punto @ Alentejo; Julho 2004

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